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Prevenir ou remediar? A fiscalização preventiva de constitucionalidade como alternativa ao cenário judicial brasileiro

Por Gabriel Dias Curioni e Leonardo Quintino

Encontram-se em trâmite no STF diversas ações de controle concentrado de constitucionalidade que possuem como plano de fundo a (in)constitucionalidade de diversos dispositivos legais introduzidos pela lei do "Marco Temporal" (lei 14.701/23). São elas a ADC 87, ADIn 7582, ADIn 7583, ADIn 7586 e ADO 86.

Este é apenas um, dentre os diversos exemplos existentes, em que o STF opera como guardião da CF/88 ao julgar as ações de controle concentrado de constitucionalidade. O que se pretende abordar no texto, todavia, não é a (importante) temática central dos julgamentos em questão, mas, sim, uma alternativa ao controle de constitucionalidade no Brasil. 

Tratando-se a CF/88 de norma central do ordenamento jurídico, tem-se a necessidade de adequação das leis infraconstitucionais ao que fora definido na norma constitucional. Para tanto, o Brasil adotou modelo dúplice de controle de constitucionalidade: (i) o modelo preventivo, a ser realizado pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo; e (ii) o modelo repressivo, a ser realizado pelo Poder Judiciário.  

Em recorte ainda mais específico do estudo, cabe ao STF, enquanto guardião da CF, realizar o controle concentrado de constitucionalidade, cuja finalidade é aferir a compatibilidade de normas infraconstitucionais com a CF/88, de forma abstrata e com efeitos vinculantes e erga omnes¹.

Contudo, observa-se, diante da elevada quantidade de processos que alcançam a instância máxima do Judiciário brasileiro, uma ineficiência - ou, ao menos, uma defasagem temporal - no exercício dessa atribuição. O volume processual e a morosidade na prestação jurisdicional indicam a fragilidade dos mecanismos constitucionais existentes, revelando uma dificuldade estrutural em assegurar, de forma efetiva e tempestiva, a supremacia e a concretização dos preceitos constitucionais.

Diante desse cenário, impõe-se uma investigação de direito comparado, com a busca por experiências em ordenamentos estrangeiros que adotam mecanismos capazes de mitigar a sobrecarga imposta às suas cortes constitucionais. Nesse contexto, destaca-se, a partir da tradição jurídica francesa, o modelo de controle preventivo de constitucionalidade a ser realizado pelo Poder Judiciário. Trata-se de uma forma de fiscalização normativa abstrata, classificada por parte da doutrina como atípica, realizada pelo Poder Judiciário, que se realiza durante o processo de formação da norma, antes mesmo de sua entrada em vigor e de sua aptidão para produzir efeitos jurídicos. Importa ressaltar que tal modalidade de controle não exclui nem inviabiliza o exercício posterior do controle, realizado após a conclusão do processo legislativo, uma vez que a própria CF admite a convivência entre distintos modelos de fiscalização da constitucionalidade².

Destaca-se que esse modelo encontra ampla aplicação nas constituições de diversos países europeus, como a Constituição Irlandesa de 1937³ e a Constituição Espanhola de 1978⁴. Contudo, é na Constituição Portuguesa de 1976 que se sobressai nessa temática, em razão da detalhada regulamentação do controle preventivo de constitucionalidade, nos termos dos arts. 278 e 279. Esse modelo foi igualmente adotado por países de tradição lusófona, a exemplo de Cabo Verde⁵, São Tomé e Príncipe⁶, Moçambique⁷ e Angola⁸.

A fiscalização preventiva, nos termos da Constituição Portuguesa de 1976, consiste em um mecanismo de controle exercido pelo Tribunal Constitucional de forma abstrata antes que a norma impugnada tenha concluído integralmente seu processo de formação⁹. O objeto desse controle é, portanto, "normas imperfeitas", ou seja, normas que ainda não adquiriram existência jurídica plena nem estão aptas a produzir efeitos no ordenamento¹⁰.

Nesse contexto, é legítimo indagar: não seria altamente desejável, para o sistema jurídico brasileiro, a adoção de um modelo semelhante que permita ao STF enfrentar a constitucionalidade da lei antes de sua vigência, a fim de evitar, ainda que parcialmente, a vigência de normas potencialmente inconstitucionais e de elevado impacto social, cuja inconstitucionalidade apenas viria a ser reconhecida posteriormente em controle repressivo de constitucionalidade?

Em casos como o narrado, ainda que a norma não tenha existência jurídica plena, o órgão jurisdicional competente (no caso do Brasil, o STF) já pode identificar indícios de inconstitucionalidade, erigindo uma barreira que impede a produção de efeitos jurídicos por parte de normas incompatíveis com a Constituição. Por essa razão, a doutrina portuguesa concebe esse modelo como um verdadeiro controle-barreira, destinado à preservação da segurança jurídica. Ressalte-se, ademais, que tal procedimento se caracteriza por sua maior celeridade e objetividade em comparação com o controle repressivo.

Não obstante, a atuação do Tribunal Constitucional restringe-se à análise de conformidade da norma com o texto constitucional, sem adentrar na compatibilidade com demais diplomas legais, limitando-se a declarar sua inconstitucionalidade. Diferentemente do que ocorre em Portugal, a inexistência, no ordenamento brasileiro, da possibilidade de submissão de atos normativos em formação ao controle prévio do STF confere ao processo legislativo um caráter eminentemente político. Nesse contexto, o controle de constitucionalidade acaba por se entrelaçar, de forma inevitável, com a dinâmica própria das atividades do Poder Legislativo e do Poder Executivo, tornando difícil dissociá-lo da esfera política.

Sob este contexto, retoma-se o exemplo das ações de controle concentrado de constitucionalidade que tratam acerca da lei do marco temporal. Diversas ações foram ajuizadas logo após a promulgação da lei para tratar acerca de sua constitucionalidade. Neste cenário, questiona-se: não haveria uma solução mais clara (e segura juridicamente) caso o controle de constitucionalidade da norma fosse realizado durante o processo legislativo, evitando tensões com dispositivos já introduzidos no ordenamento jurídico? 

A resposta ao questionamento parece estar na própria solução encontrada, até o momento, na inovadora "conciliação" instituída pelo ministro Gilmar Mendes, que tem por objetivo, nos termos empregados na decisão que a instituiu, a formação de uma Corte Especial para, dentre outras questões, "propor aperfeiçoamentos legislativos para a Lei 14.701/2023, sem prejuízo de outras medidas legislativas que se fizerem necessárias, ambos voltados à superação do impasse e novo diálogo institucional"¹¹. 

Trata-se de forma transversa para retomar a discussão legislativa acerca do tema, o que poderia ter sido evitado caso o controle de constitucionalidade fosse realizado de forma preventiva, assim como previsto em outros ordenamentos jurídicos como o de Portugal. Mais do que evitar a tensão entre os Poderes da República, a adoção de um controle prévio poderia evitar também casos como o da ADIn 5043¹², julgada somente aos 31/3/25, para declarar a inconstitucionalidade de dispositivo de lei incluído no ordenamento jurídico quase 12 anos antes (20/6/13). 

De todo o exposto neste pequeno estudo, tem-se que a adoção de um controle de constitucionalidade prévio, inspirado em modelos jurídicos estrangeiros como o português, seria uma hipótese de solução eficiente para permitir a análise de vícios normativos de cunho constitucional ainda no processo legislativo, evitando posteriores tensões entre os poderes, salvaguardando a segurança jurídica e protegendo da morosidade de análise do Judiciário.

                                               

¹Dentre os instrumentos processuais cabíveis, destacam-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), todos previstos nos artigos 102, I, "a", e 103 da Constituição da República.

²Destaca-se que quando se fala de em controle a priori estar-se-á, necessariamente, analisando sistemas de controle concentrado, de modo a deixar à margem o estudo dos que adotam o controle difuso, pois não há que se falar na aplicação pelo magistrado de normas que ainda não completaram seu processo de formação.

³O artigo 26 deste documento preceitua ser permitido ao Presidente da República - no caso de ter dúvidas acerca da conformidade constitucional de um projeto de lei - remetê-lo ao Tribunal Constitucional para sanar eventuais inconstitucionalidades. IRLANDA. Constituição da Irlanda (Bunreacht na hÉireann), 1937. Art. 26. Disponível em: https://www.irishstatutebook.ie/eli/cons/en/html. Acesso em: 15 abr. 2025.

⁴O artigo 95, nº 2 destaca que tanto o Governo quanto qualquer das Câmaras podem acionar o T.C. quando for necessário analisar a conformidade entre o acordo internacional e a Constituição nacional. ESPANHA. Constituição da Espanha. Art. 95, n. 2. Madri, 1978. Disponível em: https://www.boe.es/biblioteca_juridica/codigos/abrir_pdf.php?fich=160_Constitucion_Espanola_________________La_Constitution_Espagnole.pdf. Acesso em: 15 abr. 2025.

⁵CABO VERDE. Constituição da República de Cabo Verde. Art. 273. Praia, 1992. Disponível em: https://www.governo.cv/documentos/constituicao-da-republica/. Acesso em: 15 abr. 2025.

⁶SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE. Constituição da República Democrática de São Tomé e Príncipe. Art. 145 e 146. São Tomé, 2003. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/saotomeeprincipe/constituicao/constituicao-da-republica-democratica-de-s.tome-e. Acesso em: 15 abr. 2025.

⁷MOÇAMBIQUE. Constituição da República de Moçambique. Art. 246. Maputo, 2004. Disponível em: https://www.masa.gov.mz/wp-content/uploads/2018/01/Constituicao_republica_mocambique.pdf. Acesso em: 15 abr. 2025.

⁸ANGOLA. Constituição da República de Angola. Art. 228 e 229. Luanda, 2010. Disponível em: https://www.asg-plp.org/upload/legislacao/doc_99.pdf. Acesso em: 15 abr. 2025. 

⁹SOARES, Raísa Crespo. A fiscalização preventiva da constitucionalidade: sua afirmação como instrumento de justiça constitucional. 2018. 123 f. Dissertação (Mestrado Científico em Ciências Jurídico-Políticas com menção em Direito Constitucional) - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2018. Orientador: Professor Doutor Fernando Alves Correia.

¹⁰ Seria possível dizer que o papel do Poder Judiciário português neste caso é semelhante ao da Comissão de Justiça e Cidadania da Câmara Legislativa ou mesmo do veto presidencial no Brasil. A diferença, contudo, se dá na própria qualificação da Corte Constitucional para aferir a constitucionalidade de norma que, posteriormente, poderá ser objeto de controle de constitucionalidade no próprio Poder Judiciário.

¹¹BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 87 do Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Requerente: Progressistas e outros. Brasília, DF, 2024. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 1780-ED87-C413-926F e senha 2227-FECC-B45F-2B43. Acesso em: 14.04.2025.

¹²Prova da gravidade de se aguardar mais de 10 anos para consolidação acerca da constitucionalidade de um dispositivo de lei é o caso da ADI 5043. A Ação versava sobre a inconstitucionalidade do art. 2.º, §1.º, da Lei 12.830/2013, tendo como pano de fundo a "atribuição exclusiva a delegados para conduzir investigações criminais". Trata-se de evidente caso de insegurança jurídica em que diversas investigações criminais poderiam ser anuladas em prazo superior a 10 anos caso se interpretasse ser o dispositivo de lei constitucional.


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