A assinatura digital qualificada e os limites da competência normativa do CNJ: uma análise da decisão do CNJ sobre autorização de viagem de crianças e adolescentes desacompanhados

por José Guilherme Garcia
É perceptível que, nos últimos anos, a digitalização de serviços público e privados tem provido avanços significativos na eficiência e na acessibilidade. Entretanto, quando se tratam de documentos que envolvem direitos fundamentais de crianças e adolescentes, como a autorização para viagens, a modernização encontra resistências e desafios legais.
Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, de forma unânime, que a assinatura eletrônica realizada por certificado digital, inclusive por meio da plataforma “Gov.br”, não substitui o reconhecimento de firma em cartório para autorizações de viagem de crianças e adolescentes de 16 anos desacompanhados. Essa posição, embora legítima sob a ótica da proteção dos direitos das crianças, suscita questionamentos sobre a competência normativa do CNJ e a sua relação com a legislação vigente, especialmente a Lei n. 14.063/2020, que regula o uso de assinaturas eletrônicas no Brasil.
O objetivo deste artigo é analisar a decisão do CNJ sob o prisma da razoabilidade, da hierarquia normativa e dos limites da competência administrativa do CNJ, sugerindo a revisão da medida à luz da modernização da legislação e da digitalização dos processos. Para isso, será importante também avaliar os impactos jurídicos e práticos da exigência de reconhecimento de firma em cartório, que, embora tenha uma função protetiva, também acarreta em custos e em burocracia desnecessária.
A consulta que originou a decisão do CNJ foi realizada por uma agência de viagens, que buscava esclarecer a validade das autorizações de viagem de crianças e adolescentes desacompanhados realizadas por meio de assinaturas eletrônicas. O relator, o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, decidiu que a assinatura eletrônica, mesmo no nível "prata" ou "ouro" da plataforma Gov.br, não é suficiente para substituir o reconhecimento de firma por autenticidade, conforme exigido pelas normas internas do CNJ (Resolução nº 295/2019 e Provimento nº 103/2020). O fundamento da decisão foi a necessidade de assegurar a autenticidade do consentimento, dado o risco de desaparecimento e tráfico de menores.
A Resolução n. 295/2019 e o Provimento n. 103/2020 regulamentam, respectivamente, a autorização de viagem e a forma de realização do reconhecimento de firma. O CNJ, ao determinar a necessidade de firma reconhecida para autorizações de viagem, se baseou na premissa de que a digitalização, por mais segura que seja, ainda não garante, em seu entendimento, a suficiente segurança jurídica, principalmente no que se refere à proteção dos direitos das crianças e adolescentes.
Entretanto, a Lei n. 14.063/2020 classifica as assinaturas eletrônicas em simples, avançada e qualificada. A assinatura qualificada, feita com certificado digital emitido pela ICP-Brasil, é considerada a mais segura e deve ser aceita em interações com a Administração Pública Federal, conforme artigo 4.º.
A Polícia Federal, responsável pela fiscalização de fronteiras e autorizações de viagem, integra a Administração Pública Federal direta e, portanto, deveria, em tese, aceitar a assinatura qualificada conforme a legislação federal. A imposição do reconhecimento de firma por resolução do CNJ, no entanto, parece entrar em conflito com a Lei n. 14.063/2020, especialmente no que diz respeito à hierarquia normativa e à competência do CNJ.
O CNJ, em sua função normativa e administrativa, possui a competência para regulamentar aspectos procedimentais dentro do Poder Judiciário, mas não tem autoridade para revogar ou restringir a aplicação de leis federais, como a Lei n. 14.063/2020. Ao vedar o uso de assinaturas digitais qualificadas em autorizações de viagem, o CNJ pode estar ultrapassando seus limites e competências, conforme o artigo 103-B da Constituição Federal, o que fere o princípio da separação dos poderes e a segurança jurídica da certificação digital.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) reforça a necessidade de respeito aos limites constitucionais da competência normativa do CNJ. No Mandado de Segurança n. 31.631, o STF deixou claro que o CNJ não pode editar normas que extrapolem sua função regulamentar, nem interferir em prerrogativas constitucionais dos magistrados e órgãos do judiciário. O relator, Ministro Marco Aurélio, ressaltou que, embora o CNJ tenha o poder de zelar pela eficiência da justiça, suas decisões devem respeitar a independência funcional e a ordem jurídica estabelecida.
De forma semelhante, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5.415, o STF declarou inconstitucional dispositivo da Lei n. 13.188/2015 que condicionava a concessão de efeito suspensivo a decisão de primeiro de primeiro grau à deliberação colegiada. O Ministro Dias Toffoli, relator do caso, destacou que que tal exigência subvertia a estrutura hierárquica do Judiciário, afrontando o poder geral da cautela dos juízes e a organicidade prevista no artigo 92 da Constituição Federal (CF). O precedente evidencia que atos normativos que comprometam a funcionalidade e a coerência do sistema de justiça, mesmo quando emanados por órgãos como o CNJ, são inconstitucionais.
Embora o uso da assinatura digital qualificada tenha sido considerado seguro e eficaz em vários contextos, a decisão do CNJ impõe um obstáculo prático: o reconhecimento de firma cartorial, que exige que o responsável se desloque até um cartório, impondo custos adicionais e aumentando o tempo necessário para a formalização da autorização de viagem. Além disso, o custo de serviços cartoriais pode ser uma barreira para algumas famílias, comprometendo a acessibilidade ao processo.
O Provimento n. 103/2020 do CNJ permite que a autorização de viagem de menores desacompanhados seja realizada de forma digital, mas com a exigência do reconhecimento de firma por autenticidade, realizado por tabelião de notas utilizando a plataforma e-Notariado. Assim, a questão central da decisão não é a impossibilidade de digitalização, mas a burocratização e os custos envolvidos com o ato.
A modernização legislativa, por meio do Projeto de Lei n. 2541/2024, visa justamente eliminar essa barreira, permitindo que a assinatura digital qualificada substitua o reconhecimento de firma. A aprovação desse projeto seria um passo importante para a conciliação entre a proteção dos direitos das crianças e adolescentes e a utilização de tecnologias mais eficientes e acessíveis.
A decisão do CNJ, embora pautada na proteção integral da criança e do adolescente, revela-se equivocada sob a perspectiva legal e constitucional. Ao contrariar a Lei n. 14.063/2020, desconsiderando a validade legal da assinatura digital qualificada e impor exigência cartorial, o CNJ não só extrapola suas competências normativas, mas também cria insegurança jurídica e obstáculos à digitalização de serviços. Precedentes como o MS 31.631 e a ADI 5.415 do STF demonstram que atos normativos que afrontem a hierarquia das leis ou restrinjam competências constitucionais do Judiciário devem ser repelidos.
É necessário, contudo, o restabelecimento da legalidade. A solução para esse impasse passa pela revisão dessa decisão e adaptação das normas administrativas aos avanços legislativos e tecnológicos, respeitando a hierarquia normativa e a competência de cada poder.
Em última instância, o que se busca é garantir tanto a proteção integral dos direitos das crianças e adolescentes quanto a modernização dos processos, tornando-os mais eficientes, acessíveis, seguros e compatíveis com a realidade digital. O debate não deve se pautar apenas na proteção das crianças, mas também naquilo que são as garantias do processo seguro, eficiente e compatível com a realidade digital.
- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
- BRASIL. Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o uso de
assinaturas eletrônicas. - BRASIL. Lei nº 13.812, de 16 de março de 2019. Institui a Política Nacional de
Busca de Pessoas Desaparecidas. - BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990. - CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 2541/2024. Disponível em:
https://www.camara.leg.br. Acesso em: 2 maio 2025. - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Consulta 0003850-52.2024.2.00.0000.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 2 maio 2025. - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n. 295/2019.
- CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n. 103/2020.
- STF. Mandado de Segurança 31.631, rel. Min. Marco Aurélio, j. 15-8-2017, 1ª T, DJE de 28-8-2017.
- STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.415, rel. Min. Dias Toffoli, j. 11-3-2021, P, DJE de 25-5-2021.